A Constituição Federal de 1988 é regida por princípios que visam assegurar o exercício dos direitos fundamentais e sociais, a fim de alcançar os objetivos arrolados em seu artigo 3º para a real efetivação do Estado Social e Democrático de Direito.
O referido artigo prevê como objetivos fundamentais da República a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, a garantia do desenvolvimento nacional, a erradicação da pobreza e da marginalização, a redução das desigualdades sociais e regionais, bem como a promoção do bem de todos, sem preconceitos nem discriminação.
É certo que para concretizar tais objetivos, o Estado deve se pautar nos planos e nas diretrizes traçadas no texto constitucional, atuando por meio da implementação de determinadas políticas públicas, dentre as quais está o programa Bolsa Família, objeto de análise deste artigo.
Acerca da atuação estatal relativa à implementação de políticas públicas, Antonia Teresinha de Oliveira esclarece que:
“(...) as sociedades amadurecidas reconhecem que a Constituição alberga normas jurídicas situadas num plano hierarquicamente superior às outras normas, com caráter cogente, não se limitando apenas à estruturação do Estado e às atribuições de competências estatais, mas indo além; estabelecendo políticas fundamentais, preconizando uma ordem objetiva de valores a partir dos quais se desenvolverá a ação política do Estado. Estabelece finalidades e objetivos públicos a serem atingidos, materializados e concretizados.” (OLIVEIRA, Antonia Teresinha de. Políticas públicas e atividade administrativa. São Paulo: Fiuza Editores, 2005, p. 35/36).
Partindo desse pressuposto, a autora continua:
“O que deve estar claro é que o conceito de políticas públicas não compreende apenas as metas e os programas traçados pela Constituição Federal, mas vai além para abarcar as próprias ações concretizadoras ou implementadoras do agente público estatal em esforço conjunto, coordenado e cooperativo com a iniciativa privada.” (OLIVEIRA, Antonia Teresinha de. Políticas públicas e atividade administrativa. São Paulo: Fiuza Editores, 2005, p. 69).
Considerando que as políticas públicas devem ser estipuladas tendo por base a garantia de um mínimo existencial que abrange saúde, educação, cultura, moradia e alimentação, o programa Bolsa Família pode ser entendido como uma ação desenvolvida pelo Estado na tentativa de se aproximar cada vez mais das metas e objetivos previstos na Carta Magna, pautando-se sempre na promoção da dignidade da pessoa humana, fundamento da nossa República (artigo 1º, III, CF).
Embora a Constituição Federal não trate expressamente do programa Bolsa família, uma vez que este foi criado somente no ano de 2004 após a promulgação da lei nº 10.836, é certo que sua implementação não se deu de forma aleatória ou infundada. Pelo contrário, vale afirmar que o referido programa se espelha nos direitos e garantias preconizados constitucionalmente.
Primeiramente, cumpre mencionar que o programa Bolsa Família está, antes de mais nada, atrelado ao direito à vida previsto no artigo 5º da Constituição Federal. É o direito à vida que serve de alicerce para outros direitos, como alimentação e educação, por exemplo.
O artigo 6º, por sua vez, prevê os direitos sociais, como a educação, a saúde, a alimentação, o lazer e a assistência aos desamparados, os quais estão fortemente vinculados às premissas do programa Bolsa Família.
Verifica-se, portanto, que das garantias constitucionais decorrem direitos que devem ser assegurados à população por meio da atuação estatal, que se dá pela implementação de políticas públicas, o que inclui o Bolsa Família.
Nesse contexto, merece destaque os dizeres de Mérces da Silva Nunes, no tocante à eficácia dos direitos fundamentais:
“Os direitos fundamentais não podem deixar de ser direitos subjetivos porque decorrem diretamente dos direitos humanos básicos e, exatamente por essa especialíssima condição, têm aplicabilidade imediata e são exigíveis a todo e qualquer tempo. (...) Está claro que as prestações positivas a que o Estado está obrigado são políticas de direitos sociais que variam diante da realidade concreta dos Estados, mas aquelas estão vinculadas à fundamentalidade dos direitos sociais, que tem incontestavelmente a dimensão subjetiva, também inerente aos direitos difusos e coletivos” (NUNES, Mérces da Silva. O direito fundamental à alimentação e o princípio da segurança. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008, p. 40).
Em que pese toda a argumentação acima exposta, há quem critique o programa Bolsa Família, entendendo que se trata de uma caridade pública, de um auxílio oferecido pelo Estado que não se mostra eficiente, visto que pode fazer com que as pessoas a quem o benefício é direcionado acostumem-se a viver com essa ajuda pecuniária estatal, tornando-se ociosas.
Denis Lerrer Rosenfield defende a ideia de que o Poder Público deve prestar um auxílio financeiro provisório apenas em situações emergenciais, como calamidades naturais, por exemplo. Nesse sentido, caberia ao Estado ajudar determinados indivíduos em caráter temporário com o objetivo de superar essa situação de dificuldade financeira. A ajuda do Estado em nenhuma hipótese poderia se dar de maneira indiscriminada, mas sempre de forma provisória. Em suas palavras:
“O problema, portanto, surge quando o Estado, por uma lei, passa a atender indiscriminadamente a todos os necessitados, sem atentar para as situações específicas de emergência ou de provisoriedade. São leis que dariam acesso a todos ao direito da ajuda e da assistência pública, como se outras circunstâncias não devessem ser levadas igualmente em consideração. Ou seja, ajudas indiscriminadas desse tipo seriam um poderoso estímulo ao ócio, ao não trabalho.” (ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, democracia e capitalismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 128).
Para o referido autor, políticas públicas como o Bolsa Família são incompatíveis com o conceito aristotélico de justiça e não podem ser levadas a diante pelo Estado como se fossem um direito assegurado aos cidadãos. Afirma que isso tende a manter o indivíduo considerado como necessitado na mesma condição e conclui:
“Outro é o caso da caridade pública, consubstanciada em lei, em que o indivíduo necessitado passa a receber X de recursos alheios, sem que nada seja pedido, como se nada devesse fazer, como se estivesse exercendo somente um direito. (...) A caridade pública, embora se apresente moralmente, é destruidora de valores morais, se visa ou se cria condições para que os necessitados simplesmente permaneçam como necessitados.“ (ROSENFIELD, Denis Lerrer. Justiça, democracia e capitalismo. Rio de Janeiro: Elsevier, 2010, p. 129).
Com o devido respeito à opinião do autor supracitado, cabe ressaltar que entender o Bolsa Família como uma caridade pública ou esmola é partir de uma interpretação limitada e reacionária. Logicamente, não se trata de uma política pública sem defeitos, mas também não pode ser equiparada a uma simples esmola estatal.
O mito de que o programa Bolsa Família tem o condão de acomodar as pessoas beneficiadas não merece prosperar. De acordo com pesquisas realizadas pelo Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea), a auxílio financeiro concedido às famílias em situação de extrema pobreza pelo Programa Bolsa Família não desestimula os favorecidos a buscar emprego ou a se tornar empreendedores. Após análise do microempreendedorismo brasileiro, o pesquisador Rafael Moreira, em entrevista datada de 07 de maio de 2013, afirmou que “o Bolsa Família não produz o chamado efeito preguiça ou de acomodação. Prova disso é que boa parte dos beneficiados é empreendedora e está formalizada” (disponível em http://memoria.ebc.com.br/agenciabrasil/noticia/2013-05-07/publicacao-do-ipea-mostra-que-bolsa-família-nao-leva-beneficiario-acomodacao,
consultado em 11 de novembro de 2014).
Outros dados que afastam essa equivocada ideia de que o Bolsa Família resulta na acomodação de seus beneficiados foram obtidos na pesquisa realizada pela socióloga Walquiria Leão Rego e pelo filósofo italiano Alessandro Pinzani. Num trabalho que se estendeu de 2006 a 2011, foram ouvidas mais de 150 pessoas beneficiadas pelo programa e a conclusão obtida rebate a ideia de que o benefício acomoda seus participantes. “O ser humano é desejante. Eles querem mais da vida como qualquer pessoa”, afirmaram os pesquisadores. (disponível em http://demografiaunicamp.wordpress.com/2013/10/24/preconceito-contra-bolsa-familiaefruto-da-imensa-cultura-do-desprezo-diz-pesquisadora/).
Como se vê, a crítica que alguns fazem sobre eventual acomodação que o programa Bolsa Família causa nas pessoas beneficiadas é totalmente infundada. Não passa de mero preconceito de parcela da sociedade que, sem qualquer respaldo científico ou estatístico, profere argumentos errôneos sobre os efeitos do programa em relação à camada social mais pobre.
Dessa forma, o Bolsa Família deve ser entendido como política pública de combate à pobreza e o Poder Público deve impulsionar sua efetividade.
Assim, de forma sucinta, pode-se afirmar que o Bolsa Família é fruto da atuação do Estado que, por meio de políticas públicas, tem como meta a concretização dos objetivos previstos na Constituição Federal, de modo a garantir os direitos fundamentais e sociais e alcançar aquilo que se denomina Estado Social e Democrático de Direito.
Criado pela lei nº 10.836, de 9 de janeiro de 2004, o programa Bolsa Família simboliza uma unificação de outros programas vinculados à educação, alimentação e saúde, tais como o Bolsa Escola, Bolsa Alimentação e Auxílio-Gás.
Da análise da lei em questão, observa-se que a gestão do programa Bolsa Família é exercida de forma descentralizada, de modo que todos os entes federados ficam incumbidos de sua execução. É o que estabelece o artigo 8º:
Art. 8º A execução e a gestão do Programa Bolsa Família são públicas e governamentais e dar-se-ão de forma descentralizada, por meio da conjugação de esforços entre os entes federados, observada a intersetorialidade, a participação comunitária e o controle social.
A lei prevê, ainda, a competência do Poder Executivo Federal para regulamentar os procedimentos e todas as condições necessárias para aderir ao programa.
O artigo 9ª estabelece a criação de um conselho ou comitê de âmbito municipal para que efetuem o controle e acesso da população local ao programa.
Ademais, merece ênfase o intuito do programa Bolsa Família em combater a situação de extrema pobreza vivenciada por grande parcela da população. Com efeito, dispõe o artigo 2º da lei:
“Art. 2º Constituem benefícios financeiros do Programa, observado o disposto em regulamento:
I - o benefício básico, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de extrema pobreza;
II - o benefício variável, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de pobreza e extrema pobreza e que tenham em sua composição gestantes, nutrizes, crianças entre 0 (zero) e 12 (doze) anos ou adolescentes até 15 (quinze) anos, sendo pago até o limite de 5 (cinco) benefícios por família;
III - o benefício variável, vinculado ao adolescente, destinado a unidades familiares que se encontrem em situação de pobreza ou extrema pobreza e que tenham em sua composição adolescentes com idade entre 16 (dezesseis) e 17 (dezessete) anos, sendo pago até o limite de 2 (dois) benefícios por família.
IV - o benefício para superação da extrema pobreza, no limite de um por família, destinado às unidades familiares beneficiárias do Programa Bolsa Família e que, cumulativamente:
a) tenham em sua composição crianças e adolescentes de 0 (zero) a 15 (quinze) anos de idade; e
b) apresentem soma da renda familiar mensal e dos benefícios financeiros previstos nos incisos I a III igual ou inferior a R$ 70,00 (setenta reais) per capita.”
No tocante ao ciclo do programa, inicialmente é feito o cálculo da renda per capita da família destinatária do benefício. Depois, a família deve se comprometer a cumprir algumas condicionantes, como manter em dia a vacinação e a matrícula escolar dos filhos. Feito isso, o benefício será concedido.
A existência de condicionantes para o recebimento do benefício é fator que leva alguns estudiosos do tema a entender que essa previsão legal fere o direito à igualdade, distanciando-se do conceito de justiça. Para outros, o entendimento é de que tais condicionantes são necessárias para um melhor acompanhamento das famílias que recebem o benefício.
Ora, à medida que o Bolsa Família tem como preocupação combater a pobreza, nota-se que sua finalidade se amolda perfeitamente com o que prega a Constituição Federal. Isso porque dentre os objetivos da República estão a erradicação da pobreza e da marginalização, bem como a redução das desigualdades sociais e regionais, nos termos do artigo 3º, III, da Constituição Federal.
Lúcio Flávio Ferraz faz menção às três dimensões que o programa Bolsa Família envolve:
“O PBF pauta-se na articulação de três dimensões essenciais à superação da fome e da pobreza: promoção do alívio imediato da pobreza, por meio da transferência direta de renda à família; reforço ao exercício de direitos sociais básicos nas áreas de saúde e de educação, por meio do cumprimento das condicionalidades, o que contribui para que as famílias consigam romper o ciclo da pobreza entre gerações; coordenação de programas complementares, que têm por objetivo o desenvolvimento das famílias, de modo que os beneficiários do Bolsa Família consigam superar a situação de vulnerabilidade e de pobreza.”(FERRAZ, Lúcio Flávio. Programa Bolsa Família – impactos na distribuição de renda. Monografia apresentada para a obtenção do título de especialista latu sensu em Orçamento Público do Instituto Serzedello Corrêa, Brasília, 2008, p.29).
Desse modo, a atuação estatal por meio do Bolsa Família encontra perfeita harmonia com os pressupostos e objetivos constitucionais, não se podendo olvidar que tudo isso tem por plano de fundo a defesa da dignidade da pessoa humana.
Com efeito, nota-se que o Programa Bolsa Família é uma das principais políticas públicas existentes no Brasil, uma vez que pela transferência de renda contribui para a erradicação da pobreza, além de proporcionar auxílio voltado à alimentação e educação.
Portanto, o Bolsa Família é uma política pública que visa à efetivação de direitos consagrados na Constituição, uma vez que sua finalidade é retirar as famílias da condição de pobreza e proporcionar-lhes uma vida digna.
Com efeito, políticas públicas devem promover a dignidade. Ocorre que não se pode afirmar atualmente que o programa em questão tenha atingido sua finalidade e esteja em perfeita gestão. Pelo contrário, o que se verifica é que a contribuição advinda do Bolsa Família não é suficiente para retirar os indivíduos da condição de vulneráveis, de necessitados. Não é suficiente para erradicar a pobreza, não atendendo, portanto, seu fim primordial.
Não se pode ignorar que o programa apresenta falhas e que ainda não foi capaz de concretizar um dos objetivos da República, qual seja: a erradicação da pobreza. Contudo, não deve ser apenas alvo de críticas vazias.
É necessário que os destinatários do programa entendam seu funcionamento por completo e que toda a população tome conhecimento dos motivos que levam à implementação dessa política pública. Talvez, dessa maneira, a ideia de que o Bolsa Família se resume a uma esmola estatal seja derrubada, prevalecendo o entendimento mais prudente de que se trata de política pública utilizada para concretizar direitos.
De fato, merece aperfeiçoamento e suas falhas devem ser sanadas. Além disso, é evidente que nunca obterá resultados se considerado isoladamente. É preciso que o Estado se valha de outras políticas públicas para que, somadas e em conjunto, possam tornar efetivas as metas almejadas pela nossa Constituição, proporcionando uma vida digna a todos os cidadãos e concretizando o, às vezes utópico, Estado Social e Democrático de Direito.
Referências Bibliográficas
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FERRAZ, Lúcio Flávio. Programa Bolsa Família – impactos na distribuição de renda. Monografia apresentada para a obtenção do título de especialista latu sensu em Orçamento Público do Instituto Serzedello Corrêa, Brasília, 2008;
NOBRE, Edna Luiza. A assistência social como instrumento de inclusão social: benefício de prestação continuada e bolsa família. Dissertação apresentada para a obtenção do título de mestre ao programa de pós-graduação da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo: 2011;
NUNES, Mérces da Silva. O direito fundamental à alimentação e o princípio da segurança. Rio de Janeiro: Elsevier, 2008;
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SANSON, Milton Eduardo. O Estado e as políticas públicas no combate à desigualdade social: o programa bolsa família. Dissertação apresentada para a obtenção do título de mestre em direito político e econômico da Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo: 2007;
SMANIO, Gianpaolo Poggio; BERTOLIN, Patrícia Tuma Martins (organizadores). O direito e as políticas públicas no Brasil, São Paulo: Atlas, 2013.