Os jacarés estão entre nós e têm as caras de nossos filhos
Opinião
Publicado em 08/07/2024

Alceu A. Sperança

 

O filósofo grego Anaxágoras de Clazômenas sofreu prisão, tortura e exílio por defender que "nada nasce ou morre, mas apenas se mistura e se separa das coisas que são". Ou seja: nada foi criado, tudo existe porque é.

Lavoisier disse a mesma coisa ("Na natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma") e mesmo sendo guilhotinado por sua família enriquecer cobrando impostos teve o reconhecimento posterior de ser considerado o Pai da Química Moderna.

Muita gente boa perdeu a vida por dizer coisas que as pessoas ao redor não aceitavam como verdadeiras e mais tarde o estudo e o conhecimento mostraram ser verdades. O comportamento estranho dos jovens, por exemplo, parece-nos coisa do diabo, mas pela razão elementar de que a gente não entende o que eles dizem ou fazem.

Etarismo à parte, há velhos que já não se adaptam mais à realidade presente, principalmente aqueles que acreditam saber tudo e se fecham como ostras aos novos conhecimentos.

Tudo aquilo em que acreditaram no passado virou pó e não serve para mais nada, mas ainda continuam repetindo os mesmos mantras, chavões e crenças.

 

Mistele, o herege

Nas comemorações meio envergonhadas dos 50 anos do Plano Real, que o PT combateu como se fosse o diabo, mas depois o ajudou a ninar o mito Lula, ouviram-se tímidas vozes propondo um "novo Plano Real".

Um novo Real seria passar uma borracha naquela velha opinião formada sobre tudo. Há quem pretenda enterrar a Constituição, que os velhos de hoje não enxergaram como grande coisa em 1988, mas hoje saúdam como um hino à democracia e à liberdade.

Como o novo sempre vem, menos o Partido Novo, que é o mesmo velho liberalismo de sempre, além da proposta de um novo Plano Real cresce entre cientistas a certeza de que a crença mais firme em nossa consciência - a Teoria da Relatividade - já está superada pelos novos conhecimentos trazidos ou pelo menos facilitados pela Inteligência Artificial.

O candidato da hora à fogueira, guilhotina ou simples cancelamento nas redes sociais é o astrônomo Tobias Mistele, que propõe a grave heresia de reformular a Teoria da Relatividade de Einstein, além de mexer com coisa assustadora - a matéria escura. Mais diabólico, impossível! Deve ter usado os 40 gramas autorizados pelo STF...

 

Os antivacinas

Os malucos negacionistas antivacinas morriam de medo de que a imunização lhes injetasse no sangue alguma substância que os transformaria em jacarés.

E se eles tivessem razão? Se nossos filhos vacinados já fossem jacarés, mesmo com as mesmas carinhas humanamente espinhentas?

A teoria da jacarezação teve origem na osteopata norte-americana Carrie Madej. Ela viralizou na Net dizendo que "esta tecnologia vai criar uma nova espécie e, talvez, destrua a nossa".

Ela supunha que as vacinas de DNA e RNA alterariam o nosso material genético e por conta disso nos transformariam em improváveis espécies diferentes.

Faz lembrar velhos intolerantes dizendo que seus filhos e netos ficariam imbecis por causa da internet.

Pode-se até acender um fósforo ou dar nó em corda ao pensar nas heresias de Tobias Mistele, o astrônomo. Criado no ambiente internetiano, seria ele um jacaré imbecil, embora esteja no topo da fila para ganhar um Prêmio Nobel?

Talvez seja, a julgar por um estudo resenhado pelo The Guardian, segundo o qual jovens com vício em internet experimentam mudanças em sua química cerebral que podem alterar seus comportamentos.

O estudo, em linha com a teoria da jacarezação, usou ressonância magnética funcional (fMRI) para examinar como regiões do cérebro interagem em pessoas com vício em internet. Descobriu que ocorre diminuição geral na conectividade funcional em partes do cérebro envolvidas no pensamento ativo, a rede de controle executivo do cérebro responsável pela memória e tomada de decisões.

Muitas palavras para significar "viraram jacarés"...

 

Crocodilianos aos montes

E se este jacaré casca grossa que vos escreve dissesse, como Antônio Conselheiro, que o sertão vai virar mar e o mar vai virar sertão? Guilhotina, forca, fogueira, exilio em Cuba - de preferência Varadero?

O filme "No Paiz [sic] das Amazonas" (https://www.youtube.com/watch?v=VprZNb8m2PQ), de 1918, tem sido elogiado por ambientalistas tidos como de "esquerda" e tratado com preconceito por cabeças de "direita" que torcem o nariz para o foco nos trabalhadores da floresta dado pelo roteiro.

Mais de cem anos depois, portanto, o filme é elogiado pela "esquerda" e amaldiçoado pela "direita". Mal sabem esses aprendizes de esquerda que glorificam o filme e os babacas da direita que o hostilizam que ele foi... encomendado e pago pela direita para combater as ideias da verdadeira esquerda, a marxista!

Viraram jacarés, tudo virou pelo avesso, trocaram os papéis. Devem ter tomado um monte de vacinas no decorrer de um século. Logo, o pensamento sábio de hoje poderá ser uma tremenda babaquice amanhã ou em cem anos.

Não estranhe se algum Tobias da vida aparecer num canal de internet dizendo que Einstein era um tremendo imbecil - aquela língua de maluco esticada na foto viralizada já dava toda a pinta.   

Se a gente refletir sobre o que dizia Anaxágoras, que tudo muda mesmo ainda sendo o que sempre foi, talvez nossos filhos virados jacarés e com ideias que não entendemos nada mais sejam que simples evolução. Até provarem que Darwin também era um crocodiliano, qualquer coisa continua possível na escala evolutiva. (Ilustração: Mescla)

 

Alceu A. Esperança é escritor e jornalista - alceusperanca@ig.com.br

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