A historiadora Audrey Millet conhece por dentro a indústria da moda, onde começou a carreira para se tornar estilista. Mas quanto mais aprendia sobre os processos de fabricação das roupas, crescia também a necessidade de alertar sobre o lado B do setor: os riscos sanitários e ambientais que, por ora, são menosprezados pelos legisladores mundo afora e pelas próprias marcas.
Militantes ecologistas fazem protesto contra a fast fashion em frente a uma loja Zara em Buenos Aires, Argentina. (22/12/2021) AP - Natacha Pisarenko
O assunto levou a francesa a mudar de rumo: escreveu Le Livre Noir de la Mode (O Livro Negro da Moda, em tradução livre) em 2021, tornou-se pesquisadora em tecnologia na Universidade de Oslo, na Noruega, e no ano passado foi convidada a apresentar no Parlamento Europeu um relatório sobre a toxicidade das roupas que usamos no dia a dia. Na sequência, uma série de testes foram encomendados pela Comissão Europeia.
Os resultados começaram a aparecer em dezembro e são preocupantes: uma a cada seis peças importadas da China chega na Europa impregnada de produtos tóxicos em índices superiores aos autorizados no bloco.
“Mas, na prática, não aconteceu nada. É muito decepcionante porque sabemos perfeitamente que as roupas, inclusive as roupas íntimas, contêm produtos tóxicos e entre eles agrotóxicos, se consideramos o começo da cadeia, mas também químicos que são adicionados para o transporte, para que elas não criem fungos”, afirma Millet. “Como não comemos as nossas roupas, essa parece ser uma preocupação menor aos olhos da opinião pública, embora esses produtos entrem no nosso corpo pelos nossos poros. As nossas meias ou calcinhas parecem ser menos perigosas do que produtos ultraprocessados ou cheios de antibióticos que nós comemos”, compara.
Petróleo na pele
Uma das principais razões que explicam essa poluição intrínseca das roupas e calçados é que 70% dos tecidos e outros artigos utilizados na sua fabricação são derivados do petróleo. Em 2021, mais de 60 milhões de toneladas de poliéster, o mais comum deles, foram produzidos no mundo, segundo um estudo da Agência Francesa de Meio Ambiente (Ademe) sobre o impacto ambiental da moda.
Além disso, outros químicos, como ftalatos e derivados de cloro, são adicionados no procedimento para o conforto dos usuários: evitam manchas, facilitam a lavagem e dispensam o ferro de passar. O problema é que esses compostos podem ser cancerígenos e causar infertilidade – uma consequência, a longo prazo, do efeito perturbador endócrino desses produtos nos mamíferos, inclusive seres humanos.
“A alfândega realiza testes nos portos europeus, abrindo um contêiner e analisando uma caixa que chega da China, mas é insuficiente porque os volumes envolvidos são imensos”, aponta a pesquisadora. “O que é interessante é que, há alguns anos, os fiscais exigiram passar a trabalhar com proteções – luvas, máscaras e macacões – porque quando eles abrem as caixas, sai um odor horrível. Esse cheiro, que costumamos chamar de cheiro de novo, é o odor dos produtos químicos.”
Outro problema ainda pouco estudado são as nanopartículas presentes nos têxteis: agentes antibacterianos ou fungicidas, de um tamanho 10 mil vezes inferior a um grão de sal. Por isso, no contato com a pele, esses químicos entram na corrente sanguínea dos usuários – além de serem espalhados no meio ambiente quando as peças são lavadas, através da água.
Legislação insuficiente
Nas suas pesquisas, Audrey Millet verificou que os químicos em excesso são encontrados em marcas de todos os preços – e não apenas nas mais baratas, como se poderia imaginar. Desde a tragédia com a fábrica de roupas Rana Plaza em Bangladesh, há quase 11 anos, novas legislações aumentaram a segurança dos trabalhadores nestas usinas de baixo custo e alta produtividade, mas pouco foi feito para aumentar a transparência do processo produtivo das roupas, exportadas para o mundo inteiro. O excesso de produção, motivado pelo consumo também abusivo, despeja todo o ano 100 bilhões de novas peças de vestuário nas lojas.
“Não basta gastarmos menos água ou fazermos compostagem do nosso lixo se quisermos promover uma mudança de verdade. Estamos vendo o planeta se alterar, e as roupas, cuja produção consome enormes quantidades de água e de energia, são um bem nada ecológico”, salienta Millet. “Precisamos voltar a consumir volumes mais aceitáveis, mas também olhar melhor as etiquetas do que compramos e preferir as fibras naturais – algo que, hoje, está cada vez mais difícil de encontrar”, lamenta.
Desde 2018, a União Europeia adotou a regulamentação REACH (da sigla em inglês para Registro, Avaliação, Autorização e Restrição de Químicos) que limita a exposição dos consumidores a 33 produtos químicos cancerígenos, tóxicos para a reprodução ou que induzam a mutações genéticas e que podem estar presentes nos têxteis. A norma vale para vestuário e calçados fabricados no bloco ou importados – entretanto, a cadeia é vasta e opaca, com diversas etapas de fabricação que dificultam a rastreabilidade do produto final, sinaliza Catherine Dauriac, presidente da organização Fashion Revolution na França.
“Nós esperávamos para o ano passado uma reavaliação dessa lei, que está obsoleta, como vemos com todos esses produtos que continuam passando nas nossas fronteiras – e não só de vestuário, mas também produtos de decoração e tantos outros do nosso cotidiano. Os estudos também mostram que a lista de químicos proibidos é insuficiente”, destaca Dauriac. “Só que nada aconteceu em 2023. Nós e outras organizações vamos continuar acompanhando, porque é um grande problema.”